terça-feira, 17 de novembro de 2009

ENTREVISTA: Maria de Sousa - Uma investigadora que mudou o Mundo

A equipa do Jornal Moderno, com a colaboração dos colegas Francisco Rocha e Rodrigo Antunes do 12ºIB, entrevistou a Professora Maria de Sousa, uma investigadora nas áreas da Imunologia e Hematologia e professora a Universidade do Porto, jubilada em Outubro passado. Mais que uma mulher de ciência, uma mulher, uma cidadã do Mundo, que muito contribuiu para a Humanidade com as suas descobertas e como formadora de jovens cientistas. A equipa do JM e o Colégio Moderno estão por demais gratos pela paciência e dedicação da Professora Maria de Sousa em responder a estas perguntas e colaborar neste magnífico processo que é a mudança do Mundo.

A Professora jubilou-se no mês passado, o culminar de uma carreira de excelência e que muito contribuiu para a ciência e para a humanidade. O que significa para si deixar esse legado?

Tive a sorte de fazer muito nova, como bolseira da Fundação Gulbenkian em Londres, uma descoberta muito cedo, da então chamada área dependente do timo, hoje geralmente conhecida como área T. Avanços tecnológicos e observações nos últimos 43 anos não vieram a modificar muito o que eu descrevi. Em Portugal nos últimos 24 anos constituímos um pequeno grupo de investigação com membros excelentes tanto no corpo técnico como clínico e contribuímos um pouco para a compreensão do sistema imunológico numa doença genética de sobrecarga do ferro, a hemocromatose hereditária. Mais recentemente como resultado sobretudo do trabalho de dois alunos de doutoramento e de um investigador já doutorado, um postdoc (com descobertas agora suas) temos vindo a desvendar mecanismos muito básicos do metabolismo celular do ferro. A ciência de que perguntam são duas fatiazinhas de dois grandes mundos: da Imunologia e da Hematologia. O nosso trabalho tem procurado aproximar esses dois mundos. Um legado do conhecimento científico é equivalente às pequenas pedras que fazem os lindíssimos passeios de muitas ruas em cidades portuguesas. O que significa para mim esse legado ? Uma pequena pedra onde outros um dia vão passear com mais segurança. Um passeio a que outros acrescentarão outras pequenas pedras. A investigação científica é uma actividade humana muito boa para educar a humildade, largamente dependente da criatividade, da capacidade de perguntar e de encontrar os instrumentos para responder.

A professora decidiu construir parte da sua carreira no estrangeiro, passando pela Inglaterra, Escócia e Estados Unidos. Mudou-se para o Porto em 1985. Porque fez esta escolha?

Porque segui sempre as oportunidades de fazer investigação.

Pensa que os jovens portugueses deverão considerar a opção de trabalhar noutro país?

Depende das sua escolhas. Se decidirem fazer passeios lindíssimos em cidade portuguesas, por exemplo, o melhor é ficarem por cá. Se quiserem exportar essa beleza muito portuguesa terão que ir trabalhar noutros países…

Quando em 1971 descobriu o fenómeno que denominou ecotaxis, a Professora recorreu às tecnologias então disponíveis. Hoje, a suas teses são confirmadas pelos métodos actuais mais avançados. Em que é que divergem as tecnologias que utilizou na década de 70 e as actuais? Há uma relação indissolúvel entre a tecnologia e o avanço da ciência.

O avanço da Ciência é inseparável do avanço das tecnologias. Não foi no entanto o não ter fantásticos telescópios, que impediu Galileu de fazer observações de grande importância. O caso dos grandes microscopistas como por exemplo Ramón y Cajal é semelhante ao de Galileu . Eu tinha um microscópio que tinha aprendido a usar para ver bem o que estava a estudar durante a minha tese de curso, no Departamento de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina de Lisboa, de que era Director o avô de um dos vossos alunos, o Professor Jorge da Silva Horta e nos anos 60 usávamos radioisótopos para marcar as células que depois eram injectadas nos ratinhos e a sua localização nos tecidos revelada por autoradiografia. Hoje, temos marcadores muito mais finos envolvendo anticorpos contras moléculas específicas nas células T e marcadores imunofluorescentes.

Na ciência não há verdades, apenas hipóteses fundamentadas até serem um dia refutadas. Já teve de lidar com a situação de defender uma teoria perante a comunidade científica e verificar mais tarde estar errada?

Ainda não. Porque a minha primeira verdade foi uma observação “simples”e não propriamente uma hipótese: o que eu estava a ver e descrevi ou estava lá ou não estava, e tecnologias posteriores vieram a confirmar que as células T estavam de facto maioritariamente lá, não tive que defender uma teoria. No caso do sistema imunológico é diferente. Eu de facto postulei que o sistema imunológico tem uma função na surveillance da toxicidade do ferro. E tem acontecido, o que acontece muitas vezes em Ciência: ninguém está particularmente interessado nessa hipótese. Portanto nem sequer tem sido atacada. Com a descoberta dos meus alunos de doutoramento está-se a passar uma coisa muito mais interessante. Está acontecer quase ao mesmo tempo da descoberta por um outro grupo, com 72 horas de diferença. O artigo da Susana Oliveira e do Sérgio de Almeida saiu numa 3ªfeira e o de um grupo italiano liderado por um amigo nosso, Antonello Pietrangelo saiu numa 5ªfeira. Quando se tem a sorte deste tipo de coincidência acontecer, e o mesmo resultado ser visto por grupos diferentes quase ao mesmo tempo começam a aparecer referências à nova descoberta por outros grupos . E se porventura o que se encontrou não vier a ser confirmado, cá estaremos para explicar as diferenças. O progresso de uma observação em Ciência é algumas vezes lento.

Marie Curie um dia afirmou que uma cientista é como uma criança diante de um fenómeno natural que a impressiona como um conto de fadas. Encontra essa beleza na sua investigação?

Sem dúvida. Creio que até tenho um pequeno texto sobre isso, com o título Coisas da Ciência, num livrinho publicado pela Gradiva com o título Hora e Circunstância.

Hoje em dia, questiona-se cada vez mais o uso de espécimes vivos em experiências científicas. Qual é a sua posição em relação a este assunto? Pensa existirem limites para uso de animais, nomeadamente primatas?

Curiosamente, eu acho que sim. Mas não distingo particularmente os primatas. Trabalhei sobretudo com ratinhos, mas também com ratos, peixes e galinhas. Na minha perspectiva todos os animais nos devem merecer igual respeito e em muitos casos o seu uso continuará sempre a ser necessário. O problema que eu vejo do ponto de vista de um cientista preocupado com este aspecto da prática da investigação é o seguinte: um(a) investigadora a trabalhar com modelos animais de doenças humanas, por exemplo, tem que medir muito cuidadosamente em cada experiência quantos animais é que terá de sacrificar para ter resultados significativos, se vai provocar desnecessário sofrimento aos animais, se de facto a experiência poderia dar resultados com o uso exclusivo de células, etc. Penso que a ética animal tem que ser rigorosamente respeitada, pensada e pesada em cada experiência que se faz.

Todos os dias, somos confrontados com problemas ambientais, como o aquecimento global e o buraco na camada de ozono. Destes fenómenos, saltam à vista diversas consequências das quais destacamos o elevado nível de radiação que atinge a superfície da Terra. Uma vez que a radiação é uma das principais causadoras de mutações, é viável pensar que se não resolvermos os problemas ambientais de forma célere, o ser humano, bem como todas as outras espécies, possam sofrer mutações diversas no seu organismo? Poderá a nossa existência estar comprometida?

Pelo que sei a existência humana está mais comprometida pela fome, pela pobreza, pelas guerras e, em Portugal pelos desastres de automóvel e de trabalho, do que por mutações.

Umas das temáticas contemporâneas, de que tanto se fala, é o poder de cada um no processo de mudança do Mundo e do país para melhor. E sendo este o mote desta edição do JM, a seu ver, é possível mudar o mundo através da investigação?

Pode mudar-se o mundo, como tão bem ilustrado pelos movimentos dos direitos civis nos Estados Unidos, pela inspiração de homens como Martin Luther King, Nelson Mandela, Muhamad Yunus. Pode mudar-se o balanço de forças bélicas no mundo pelo uso da bomba atómica, como se demonstrou na II Guerra Mundial, bomba essa que resultou de investigação básica em Física. Mudou-se também o mundo no campo da Medicina, porque se mudou a vida média dos cidadãos do mundo, sobretudo o mundo ocidental com a introdução de vacinas e a descoberta dos antibióticos. Mudou-se o mundo dos diabéticos por se ter descoberto em que órgão se fazia a insulina e se vir a desenvolver a possibilidade de injectar insulina no caso dos diabéticos e a fazer outras terapias de substituição em doenças como a doença de Gaucher. Claro que se pode mudar o mundo: para melhor ou para pior. A investigação, na minha opinião (e experiência), é só mais uma modesta actividade humana que pode por exemplo mudar para melhor os pequenos mundos dos doentes com as doenças que estudamos.

O quadro do pensamento da juventude actual consiste por vezes no descrédito e porventura desprezo por tudo o que se afirme como produto intelectual e reflexivo. Partilha desta ideia? O que propõe para combater este problema?

Eu tenho um conhecimento muito limitado e privilegiado da juventude actual. Tanto os meus alunos como os meus amigos jovens não manifestam esse descrédito porventura desprezo por tudo o que se afirma produto intelectual reflexivo. Pelo contrário. A impressão que colho dos pequenos grupos que conheço é que temos entre os mais jovens portugueses, gente que envergonha muitos dos mais velhos (que também conheço).Tentando, no entanto, partilhar por um momento essa ideia para efeito desta entrevista, creio que cabe aos mais velhos comportarem-se de uma tal forma inspiradora dos valores do pensamento e da criatividade que não desacreditem esses mesmos valores. Onde? Na sociedade em geral. Nas telenovelas (o que não me parece de todo acontecer). Nas salas de aula. Em casa. No trabalho. Pensar criativamente é um atributo único ao ser humano. Creio que hoje em dia, em geral não se discute o suficiente sobre o que significa ser-se humano. O que é que verdadeiramente nos distingue dos outros animais. Amá-los e respeitá-los sim, mas mesmo para fazer isso bem é indispensável perceber bem o que é que verdadeiramente nos distingue.

O nosso jornal tem tentado motivar os alunos a participar nesta iniciativa. Porém, a participação tem sido escassa. Que mensagem deixa aos alunos do colégio, que por medo de se manifestarem ou por falta de auto-confiança, não escrevem para o jornal, quando no fundo anseiam fazê-lo?

Talvez achem que um Jornal é uma forma desadequada de comunicar no princípio do século XXI. Estive numa reunião a semana passada em que um colega israelita contava que tinha dado uma publicação importante para ler a uma colaboradora: em papel. E que ela em vez de ler do papel, fez “scan” e leu e sublinhou tudo no ecrã do computador. Os tempos estão a mudar. O vosso jornal é online? Se é, esta história não se aplica... Eu não tenho grande apetência para transmitir mensagens. Talvez devessem fazer “uma investigação” a procurar saber se os vosso colegas lêem jornais: quaisquer jornais. Se não lêem não querem dizer nada, não por medo, nem falta de confiança, simplesmente porque acham que é uma perda de tempo, se ninguém vai ler. Se lêem, podem ao contrário achar que os temas como este de entrevistar velhas senhoras não é lá grande ideia... Como é que sabem que “anseiam fazê-lo? Têm um estudo com esse resultado, ou é só impressão?

Acredita no poder das novas gerações na continuação do desenvolvimento da ciência?

Acredito. Por muito do que está a acontecer em novos laboratórios de investigação acredito que são os novos que estão a voltar para esses laboratórios que vão assegurar o desenvolvimento da ciência nas áreas que eu conheço, que incluem a biologia molecular e celular como instrumentos.

Há algum conselho que queira deixar aos nossos colegas finalistas que pensam enveredar profissionalmente pela investigação científica, nomeadamente na biologia molecular e celular?

O primeiro conselho é saberem dentro de si próprios se gostam de fazer perguntas e procurar responder a essas perguntas, não ficar só a falar sobre elas. Se dentro de si próprios descobrem que gostam de fazer perguntas têm que aprender técnicas que lhes permitam procurar responder. Mas o começo como o começo de qualquer aprendiz é ir para uma boa oficina. Coisa que podem começar a fazer muito cedo contactando investigadores “directores” das oficinas eles/elas próprio(a)s com perguntas e capacidade de ensinar, como de responder. De uma primeira experiência num bom laboratório, podem logo perceber se era o que queriam.

Que condições têm os jovens cientistas em Portugal?

Se começarem por ter as condições dentro de si próprios, há neste momento um número crescente de iniciativas e financiamentos a apoiar jovens finalistas que queiram vir a fazer investigação e excelentes laboratórios portugueses para onde querem voltar e estão a voltar investigadores portugueses e estrangeiros.
Em suma, talvez que na realidade as coisas não sejam nem tão fáceis, nem tão prometedoras como eu as vejo. Mas só há uma coisa que é certa e de certo modo fácil na vida: morrer. Viver não é fácil. É o maior desafio que se coloca a sermos humanos: viver bem. Connosco próprios. Com os nossos familiares. Com os nossos amigos. Com os ratinhos. Com os peixes. Com as galinhas. Com outros primatas. Mesmo com entrevistadores que nos dão prazos apertados, vindos de um Colégio que tudo indica, tendo longas e antigas raízes, não deixa de ser Moderno.

Martin Luther King terá um dia afirmado o seguinte: “Our scientific power has outrun our spiritual power. We have guided missiles and misguided men.” Será esta afirmação ainda hoje pertinente?

Infelizmente não é só o poder científico. O poder financeiro. O poder militar. O poder em muitos casos só pelo poder. Quando na resposta a uma pergunta anterior eu disse que pelo que sei a existência humana está mais comprometida pela fome, pela pobreza, pelas guerras e, em Portugal pelos desastres de automóvel e de trabalho, do que por mutações, de certo modo eu queria dizer que conseguimos fazer coisas fantásticas com mísseis, com mutagénes dirigida, com extraordinárias técnicas de biologia molecular, mas muita existência humana continua comprometida precisamente por falta do exercício de poderes espirituais que se oponham a tantas e tão tentadoras formas de poder material. Mas para quê ser aluno do Colégio e não querer mudar o mundo? Até eu quero e fui aluna de um liceu que está em ruínas e de que ninguém hoje ouviu falar…

Agora que se jubilou, que projectos tem para futuro?

Procurar viver bem, o que não é nada fácil. E claro, continuar a mudar o mundo... Isto é, ter a certeza que o mundo que deixar quando sair, não de dar aulas, mas de viver, ser diferente e talvez melhor do que o mundo em que entrei. Por ter sido humano sendo. Em inglês: For having been a human being. Como cientista ter contribuído com novos conhecimentos. Por, como mulher ter vivido num século em queão morri nem de tédio nem de tuberculose.Como professora ter encontrado estudantes e colaboradores espectaculares que estão por sua vez a contribuir com novos conhecimentos e novas gentes.

Maria de Sousa, 2 de Novembro de 2009

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