por Prof. António Carlos Cortez
Falar de Camões é sempre um desafio. Se, ao falarmos do autor da épica somos, desde logo, invadidos por um halo de respeito e veneração (no sentido do conhecimento íntimo dos textos e não de uma qualquer salivação elogiosa), igualmente ao falarmos de Saramago esses mesmos respeito e veneração tomam forma, crescem no coração dos leitores. Pelo meio, toda uma literatura que urge conhecer nestes tempos mediáticos e em que se confunde a cultura com a publicidade.
Como referiu, há bem pouco tempo Eduardo Lourenço, existimos numa espécie de “idealismo prodigioso” que nos impede, de facto, de viver a vida com aquela atenção ao nosso património artístico e cultural, menoscabando tudo o que seja iniciativa cultural, investimento artístico, pensamento reflexivo. E, todavia, todos têm uma opinião, todos emitem os seus arrazoados, sobre nada e sobre tudo...
Vêm estas palavras a propósito de um breve itinerário em torno de quatro obras literárias que nem sempre são cotejadas com a devida atenção. O método comparativo em Literatura, com os contributos da linguística e da Filosofia, da História e da Geografia, e outras áreas científicas, é o mais proveitoso na análise literária.
Assim, Os Lusíadas, obra máxima da cultura de Língua Portuguesa, é uma efabulação extremamente original que engloba vários registos na sua forma final: trata-se, como sabemos, de um texto épico-narrativo, com estrofes compostas com oito versos (oitavas), ao abrigo do ritmo decassilábico, como mandava a poética clássica, que Camões dominava como poucos. Por outro lado, interagem com os homens – o Gama e os nautas -, os deuses pagãos, emanações de um Deus a quem Vasco da Gama se dirige em inúmeros momentos; Deus que se encontra simbolizado quer em Santa Maria, quer através da "Madre que nos Céus está em essência", a "Divina Guarda", como lhe chama Camões. Se o Ideal épico é, por um lado, cantar os feitos de um heróis ou de um povo (Homero canta Ulisses, Virgílio canta Eneias, Apolónio de Rodes canta os argonautas), e enaltecer "o peito ilustre lusitano", não menos verdade é que há um outro ideal que rege a intriga da viagem à Índia: o Gama, actante central do poema, fez a viagem entre 1597 e 1499, Camões enaltece essa viagem, mitificando o herói e tornando-o, por meio das "bodas divinas" com Téthys, na Ilha do Amor, símbolo do herói que se auto-conhece, após enfrentar o Medo, representado, na estrutura do poema, no Canto V, justamente a meio da "viagem" da escrita e a meio do percurso marítimo do Gama. Ofélia Paiva Monteiro, num ensaio de 1972, bem como Jorge de Sena, ou Helder Macedo, não se enganaram na interpretação alegórica desse episódio: o Adamastor é, bem vistas as coisas, o Inferno, as forças primitivas que existem no interior do viajante, as quais devem ser conhecidas ( e o monstro conta a sua história), de modo a serem ultrapassadas, por via do crescimento interior (por isso aquela pergunta "Quem és tu?", dirigida ao Titã é, no fundo, a pergunta que a si mesmo o Gama se impõe). Sem irrealismos prodigiosos, certo de que, como dirá Pessoa, "Deus quer, o Homem sonha e a Obra nasce", o Gama pode, a partir do Canto V, enfrentar as profecias malignas, vencendo-as. Uma das mensagens mais pertinentes da épica passa, precisamente, pelo alegorismo do texto: uma epopeia que, seguindo as clássicas é, como referiu António José Saraiva, a primeira das epopeias modernas, na qual o Homem, renascentista, sob o primado do indivíduo, abandona a visão teocêntrica do Mundo, para ver ("vi claramente visto", diz Camões), para se tornar no heróis “seguro e forte contra quem poder não teve a Morte”. E não esqueçamos que, logo na Proposição, Camões pretende cantar “Aqueles que por actos valerosos se vão da lei da morte libertando”, consciente de que “com uma não n’espada noutra a pena” é possível tornar os “barões assinalados” os homens divinizados, os filhos da Luz, como à letra deve ser entendido o título da obra, neologismo de André de Resende.
Ora, Pessoa , na Mensagem, convoca igualmente um sinal ("Bem dito seja Deus, nosso Senhor, que nos deu o Sinal", assim vem encimada a obra), correspondente, na ideologia sebástica e messiânica, ao sinal da Ordem de Cristo. As caravelas da empresa marítima levavam nas velas a cruz vermelha da Ordem, e Pessoa, em Textos Para a Compreensão da Mensagem, considerou impossível o entendimento da obra sem o conhecimento dos símbolos e do pensamento hermético: do templarismo a seus derivados. Os heróis são, nesta obra, mitos e o mito, se é "o nada que é tudo", é porque fecunda a realidade, isto é, sem ideias é impossível fundar o futuro. Camões e Pessoa, neste como em outros aspectos, são irmãos no pensamento. Para Pessoa, a viagem é mítica e mística, o heróis "assiste vário e involuntário" e age em nome duma força divina. Em Camões, a viagem conduz-nos à união mística do herói com a Téthys, na "ínsula divina", podendo o protagonista subir "ao céu sereno", ele vestido de "carmesim", ela, filha do Oceano, num ritual de iniciação do Homem nas águas do insconsciente, de que Téthys é signo último. Mas viagem é também o tópico de Felizmente há Luar!, obra que, ao submeter o leitor à intersecção de planos históricos (1817/1960), faz do texto-metáfora, um texto-símbolo: Gomes Freire de Andrade, que jamais aparece na intriga, é o deus ex machina, o herói que, na voz de Matilde, é a encarnação de uma coragem portuguesa, desconhecida já dos seus contemporâneos, que o traem, porque se traem a si, acima de tudo. Não creio que esta peça de teatro seja assim tão simples: o Teatro Épico, para Brecht, não era e exigia-se ao dramaturgo que cumprisse aquilo que, curiosamente no romance Memorial do Convento, Saramago levará às últimas consequências: erguer um texto que actue sobre a consciência dos leitores, um memorial, no sentido de "homenagem". Da épica ao romance, a viagem é sempre um itinerário em torno do grande tema que tem obsidiado os poetas e escritores portugueses: Portugal.
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