terça-feira, 17 de novembro de 2009

Porquê o TGV

Por Pedro Pinto, 12ºIII

Portugal é um país periférico, embora tenha sido curiosamente aquele que mais contribuiu para acrescentar novos territórios ao mundo a partir da grande aventura dos Descobrimentos, no século XVI. Situado no extremo ocidental do “velho continente”, e fazendo apenas fronteira terrestre com a Espanha, o nosso país sempre se encontrou muito dependente do território vizinho, ainda que tenha encontrado ao longo de séculos no vasto Oceano Atlântico a estrada que lhe permitia comunicar com o mundo.
    No início do século XIX, por época da introdução das linhas de caminho-de-ferro na Europa, as invasões napoleónicas faziam temer a Península Ibérica. Vendo na fronteira entre o território espanhol e o território francês um ponto de potencial perigo, Espanha adoptou um procedimento singular, que consistia em alterar o espaçamento entre os carris – bitola – de 1,44 metros para 1,67 metros, de forma a acautelar possíveis invasões no seu país. Assim, apenas por um motivo estratégico-militar, já nas primeiras décadas do século XIX, se iria comprometer a interoperabilidade do caminho-de-ferro, ou seja, a capacidade de circulação de um qualquer comboio em qualquer país da Europa, independentemente do seu tipo.
    Com largos anos de atraso face a outros países europeus, nomeadamente a França ou o Reino Unido, Portugal inaugurou a sua primeira linha de caminho-de-ferro apenas em 1856. A duração da primeira viagem, entre a capital do país e o Carregado, que teve lugar no dia 28 de Outubro, rondou os 40 minutos, para percorrer os 36 quilómetros que separavam as duas localidades. Ainda construída em bitola europeia, com um espaçamento entre os carris de 1,44 metros, a Linha do Leste foi rapidamente prolongada do Carregado até à zona do Entroncamento, para depois tomar uma orientação para o lado espanhol. Entretanto, enquanto se iam realizando os projectos que levariam a linha até Elvas, Portugal começou a debater-se com um grave problema: chegado a território espanhol, os comboios não podiam prosseguir caminho, já que a bitola espanhola não era compatível com a bitola portuguesa. Desta forma, os troços mais recentes da Linha do Leste acabaram por ser já construídos de acordo com o espaçamento entre os carris espanhol. Quando os comboios chegaram a Elvas, em 1863, ou a Vila Nova de Gaia, no ano seguinte, a bitola em todo o país era já a espanhola, agora denominada de ibérica. O caminho para o isolamento entre Portugal e Espanha e a Europa estava agora definitivamente comprometido.
    Seguindo o progresso e a evolução tecnológica, um século mais tarde, em 1981 é inaugurado em França, entre Paris e Lyon, o primeiro troço do TGV – Train à Grande Vitesse – um comboio de alta velocidade que podia inicialmente atingir os 270 quilómetros por hora, com bitola de 1,44 metros. Não ficando imune ao projecto do TGV, Espanha inaugurou onze anos depois, em 1992, o seu primeiro troço de AVE – Alta Velocidad Española – entre Madrid e Sevilha, com o propósito de ligar a capital à cidade da Andaluzia onde se iria realizar a Expo'92. Antecipando já a possibilidade de uma ligação ferroviária de alta velocidade com França, o AVE foi construído em bitola europeia, com 1,44 metros de espaçamento entre os carris, podendo alcançar uma velocidade comercial de 300 quilómetros por hora. Já Portugal precisou de mais sete anos para desenvolver o seu primeiro comboio de velocidade elevada, mas não de alta velocidade, o Alfa Pendular, cuja primeira viagem entre Lisboa e o Porto se realizou em 1999. Podendo alcançar os 220 quilómetros por hora, e circulando na Linha do Norte, o Alfa Pendular nunca pôde cumprir o seu objectivo de ligar as duas principais cidades do país no menor tempo possível, que se estima em 1 hora e 50 minutos, designadamente por circular numa linha ainda não completamente renovada, que inclui mesmo várias passagens de nível, e por ter de partilhar os mesmos carris com outros comboios, como o Intercidades, o que explica que a sua bitola seja ainda e sempre a ibérica. Actualmente, já 10 anos depois da primeira viagem técnica entre a Estação de Santa Apolónia, em Lisboa, e a Estação da Campanhã, no Porto, o Alfa Pendular continua a precisar de 2 horas e 44 minutos para percorrer a Linha do Norte, mesmo após terem sido gastos milhões de euros na renovação de pequenos troços. Já em 2003, o Alfa Pendular chegou a Faro via Estação do Oriente, fazendo a travessia do Tejo através do tabuleiro ferroviário da Ponte 25 de Abril, inaugurado quatro anos antes, e também construído em bitola ibérica, para fazer a ligação do eixo ferroviário entre as duas margens da cidade de Lisboa.
    Em Novembro de 2003, teve lugar a XIX Cimeira Ibérica, na qual a rede ferroviária de alta velocidade na Península Ibérica ganhou finalmente forma, após longos anos de adiamento, graças ao acordo entre o Primeiro-Ministro Português, Durão Barroso, e José María Aznar. Na verdade, sem este entendimento, seria um erro estratégico para o país desperdiçar os elevados financiamentos da União Europeia (UE) para a construção do TGV, que rondariam os 80% do custo total do empreendimento, e que poderiam ficar em causa logo após o alargamento da UE ao leste europeu, a partir de 2004. Fechado o acordo entre ambos os países de construir o TGV, eram cinco as linhas de alta velocidade previstas, que se dividiram nos troços Lisboa-Évora-Badajoz-Madrid, Lisboa-Aveiro-Porto, Porto-Vigo, Aveiro-Salamanca, e Évora-Faro-Huelva. A natural prioridade ia para as três primeiras, cuja data de conclusão era apontada para 2010, e que se compunha por um eixo transversal, a “nova” Linha do Norte, agora levada até Vigo, e por outro eixo longitudinal, que ligaria a capital portuguesa a Madrid. A partir de 2015, avançar-se-ia com a ligação Aveiro-Salamanca, que formaria o “π” deitado, restando apenas para 2018 a ligação que sobejava, entre Évora-Faro-Huelva, precisamente por se questionar a sua rentabilidade. 
    Após este ambicioso acordo, começaram a fazer-se os projectos que tornariam possível a ligação em alta velocidade com a vizinha Espanha. Contudo, passados poucos meses, logo se detectou um problema que há muito se vinha a arrastar nas ferrovias portuguesas: a ausência de um sequer quilómetro construído em bitola europeia numa rede com perto de três mil voltando a não se cumprir o desígnio da interoperabilidade. 
Na verdade, mesmo havendo sido prioridades portuguesas desde a sua adesão à UE a electrificação e renovação de várias linhas, como a Linha do Norte, que ainda hoje decorre e com derrapagens muito significativas, ou a Linha da Beira Alta, nunca foi prevista a adaptação da bitola destes troços do modelo ibérico para o europeu, através de travessas de dupla fixação, também conhecidas por bi-bitola, e que poderiam reduzir drasticamente os custos da construção do TGV em Portugal.
No que se refere ao atravessamento dos rios Douro e Tejo, o problema da ausência da bi-bitola coloca-se também no caso da travessia ferroviária da Ponte São João, no Porto, construída em 1991 para substituir a “velha” Ponte Dona Maria Pia, em que os comboios não podiam exceder os 20 quilómetros por hora. Ainda assim, se no caso do Porto, a natureza da Ponte São João, construída em betão armado, permite sem constrangimentos a introdução da bi-bitola, e não compromete o percurso do TGV dentro da cidade, no caso da Ponte 25 de Abril não só a sua estrutura construtiva iria trazer alguns constrangimentos técnicos à circulação do TGV como também o obrigaria a fazer um percurso demasiado longo na Península de Setúbal e dentro da própria cidade de Lisboa, onde se iria também cruzar com outros comboios. Assim, ao perder eficiência, e por poder baixar a velocidade média da viagem entre Lisboa e Madrid, será quase inevitável a construção de uma Terceira Travessia sobre o Tejo (TTT), sob pena de a procura ficar reduzida e de ficar posta em causa a existência da linha, dado que a Ponte Vasco da Gama não foi projectada para receber um tabuleiro ferroviário. Já quanto à localização da estação do TGV na capital, a Gare do Oriente tem como mais-valia a ligação directa ao metropolitano, necessitando apenas de obras de ampliação e adaptação.
Antes de terminar, não podemos deixar de considerar se esta é ou não a época ideal para iniciar a construção de um projecto tão arrojado como o TGV. Se, por um lado, a crise económica mundial abalou e abala a economia portuguesa, muito dependente do exterior, por outro não podemos abdicar de pelo menos uma ligação a Espanha em alta velocidade, que beneficiará tanto o transporte de passageiros como o de mercadorias. Ultrapassada a dúvida da localização do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), entre a Ota e Alcochete, deixa de ser estritamente necessário levar o TGV ao Porto para passar no Aeroporto da Ota, para se considerar agora apenas um ramal na linha Lisboa-Madrid para o acesso ao Aeroporto de Alcochete. Por outras palavras, com a opção da Ota eliminada, com os constrangimentos que poderiam advir para Portugal de um eventual endividamento numa época de crise económica, e com o Alfa Pendular a funcionar, pode considerar-se muito sensatamente o adiamento da construção do TGV entre Lisboa e o Porto.
Conforme já se referiu, caso o Alfa Pendular tirasse proveito das potencialidades da Linha do Norte totalmente modernizada, poder-se-ia fazer a viagem Lisboa-Porto em cerca de 1 hora e 50 minutos, trazendo o TGV apenas uma melhoria de 20 minutos, que deveria ainda ser posta em causa com o número demasiado elevado de estações que se prevê construir na linha Lisboa-Porto. Por outro lado, uma vez que o Alfa Pendular chega também a Braga, a partir dessa cidade poder-se-ia estudar uma ampliação da rede coberta por este comboio até à fronteira, que não dista mais de 65 quilómetros, fazendo-se depois a ligação a Espanha com recurso a um intercambiador, ou seja, a um mecanismo de alteração da bitola quase automático, sem ser necessária a introdução do bi-bitola, mais rentável em percursos de maior extensão e comuns a dois tipos diferentes de comboios. Desta forma, apenas com a alteração dos eixos e das bogies do Alfa Pendular, seria talvez possível solucionar o problema do atravessamento da fronteira que a linha Porto-Vigo impõe.
Paralelamente, a canalização de uma linha de alta velocidade entre Lisboa e Madrid tornaria o país muito mais central no contexto europeu, especialmente se tivermos em conta o importante papel que o Porto de Sines pode ter como “porta de entrada” de mercadorias para o continente europeu. Na verdade, com um ramal de alta velocidade entre Sines e a linha Lisboa-Madrid, seria possível tirar as potencialidades do Porto de Sines, nomeadamente a sua posição estratégica no contexto atlântico, no triângulo Europa-América-África, a sua elevada profundidade, que não condiciona a atracagem dos navios, e a sua forte modernização, com mecanismos avançados de movimentação de mercadorias, nomeadamente os sistemas “ro-ro” e “lo-lo”. Ao acentuar-se a complementaridade entre os diferentes meios de transporte, poder-se-ia descongestionar as rodovias, tanto a nível interno como externo, e acentuar-se-ia uma especialização de cada tipo de transporte, o que iria ainda aumentar a sua eficiência e também a própria competitividade das nossas exportações. Importante seria também pensar para médio/longo prazo a concretização da linha Aveiro-Salamanca, que ainda assim não deveria avançar para já devido aos custos elevados que traria para o país.
    Desta forma, com a linha Lisboa-Madrid, seria possível a Portugal ambicionar uma maior centralidade no contexto europeu, através de um acesso mais rápido e eficiente, podendo competir e rivalizar com o avião entre as capitais portuguesa e espanhola, recuperando assim ambos os países um isolamento que mantêm há perto de 200 anos. Esperemos, pois, que impere o bom senso e que se analisem ponderadamente os benefícios e os custos de cada linha de TGV, aproximando o país do centro nevrálgico da Europa.


Bibliografia:
Prof. Eng.º António Brotas, Prof. António Barreto, Escultor Cerveira Pinto, Prof. Eng.º António Diogo Pinto, Prof. Doutor Galopim de Carvalho, Arq.º Carlos Sant'ana, Eng.º Frederico Brotas de Carvalho, Arq.º Gonçalo Ribeiro Telles, dr. José Carlos Morais, Major General Pilav. José Krus Abecasis, General José Loureiro dos Santos, Judite França, Arq.º Luís Gonçalves, Prof. Mendo Castro Henriques, Dr. Miguel Frasquilho, Patrícia Pires, Dr. Pedro Quartin Graça, Engº Reis Borges, Dr. Rui Moreira, Rui Rodrigues, Eng.ª Teresa Maria Gamito e Dr. Vítor Bento, O Erro da Ota, 2007, Tribuna da História.

4 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente artigo que acabei de ler. Para além de ter uma escrita muito boa este aluno consegue "saber" mais do que certos políticos e jornalistas. Pena não ser convenientemente divulgado.
    Artigos como estes, quase diria que não podiam ser da autoria de um miúdo do 12.ºano. Parabéns Pedro, vais longe de certeza.

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  2. Não queria deixar de agradeceu a quem escreveu o comentário anterior as mais agradáveis palavras que já recebi por ter escrito um texto para o jornal da escola ;). O meu muito obrigado!

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  3. Caro Pedro,
    Não posso deixar de aceitar o seu obrigado, mas as verdades são para ser ditas. Penso que está na área de Economia e, faz muito bem. O seu artigo demonstra que tem opiniões muito bem formadas sobre a realidade do país. Devia enviar este seu artigo para um jornal, porque iria ter muito sucesso e talvez os políticos se apercebessem que existem grandes crânios neste país. São vocês a geração do futuro e fico muito satisfeito por encontrar pessoas como você, um rapazinho que deve ter 18 anos e com uma tal capacidade de escrita e de visão. Não sei se ouviu na rádio um cometário do senhor Presidente da República há poucos dias, em que se referia ao TGV e ao Porto de Sines, será que ele se inspirou no seu artigo? Quase parece...
    Continue a escrever porque a sua escrita é clara, objectiva e muito sensata.
    A directora do colégio deve sentir um enorme orgulho de ter um aluno como o menino, concerteza lhe deu os parabéns.
    Vá em frente e mais uma vez aconselho-o a enviar o artigo para um jornal. O Pedro tem tudo para vencer.
    Mais uma vez o felicito.

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  4. Já um pouco atrasado, não queria deixar de lhe retribuir, uma vez mais, o meu muito obrigado. Sabe bem ler estas palavras! É nos momentos de maior dificuldade que nos reconforta saber que temos apoio, mesmo que não sejamos reconhecidos internamente!
    Já que gostou tanto do meu texto, tomo a liberdade de indicar que no endereço http://boralamudaromundo.blogspot.com/2010/03/educacao-e-o-civismo-na-area-de.html pode ler um novo artigo acerca da problemática da educação em Portugal. Espero que goste!

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